sexta-feira, 17 de março de 2017

Por Alexandre Salem - Além do Bem e do Mal !

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Alexandre Salem
A pergunta é: Hominídeos primitivos já vieram ao mundo equipados com a consciência da morte? Ao que tudo indica, não. Senão já sabiam rezar antes de descerem das árvores. E certamente o homem neandertalense, já no paleolítico, teria um papa cujo cetro de pedra e osso os paleontólogos não hesitariam nomear como precursor do maracá de pajé. E não confundir instinto de defesa infenso à morte com consciência da morte. Religião é uma invenção do homem ansioso, preocupado, consciente do próprio fim. É a partir dessa consciência que surge a senhora ansiedade a nos acicatar para aproveitarmos ao máximo nosso tempo de existência. Então, podemos inferir que consciência da morte seja fruto de uma evolução biológica antropológica, que inexorável e concomitantemente em seu bojo trouxe outra evolução: a espiritual. Nasceu a fé. Logo o homem fez trampolim do pé de pau residencial para dum salto certeiro se ancorar nos céus; que ele não é besta. E por que religião existe? Para o crente a resposta está na ponta da língua: para honrar a Deus e rogar-lhe que interceda por nós; e, de preferência, o tempo todo. Contudo, é entre agnósticos, ateus, e outros que buscam a abordagem científica do fenômeno religioso, que a questão se torna controversa. Dentre esses, há quem aposte que o pendor humano pelo sobrenatural é o resultado inopinado dos circuitos cerebrais que nos torna crianças obedientes, crendo, sem nenhum espírito crítico, nas estórias fabulosas das babás. Outros estudiosos do assunto elaboram um pouco mais a questão ao sugerirem a concorrência de outros módulos neuronais, como a tendência a ver visagem onde só existem sombras. Partindo dessa premissa visionária, vou com a máxima do socialista Augusto Bebel, e que virou bordão de ateus mais engajados: “O homem criou Deus. E não Deus criou o homem”. Entendo, todavia, que um Deus bem criado tem a obrigação virtual virtuosa de existir. Talvez por isso eu, a despeito de não professar nenhuma religião, tenha me tornado um deísta. Com efeito, a hipótese de que deuses são criações humanas explica muito melhor a universalidade do fenômeno religioso do que as teorias axiomáticas propugnadas pelo catolicismo.
              Não é à toa que os templos desde os primórdios da religião são construções que tendem a nos enlevar a partir do seu gigantismo. Observemos o pé direito das naves das igrejas católicas. Ao atinarmos para a beleza arquitetônica das grandes catedrais góticas européias, que nos passam a noção de solidez indelével e altivez sublime—a catedral de Colônia (Alemanha) é um bom exemplo—, sentimos a magia de minorar a ansiedade pela simbologia da proximidade com o altíssimo. Sim! Porque de cara assentimos que sua grandiosidade encerra certa infinitude célica, algo muito maior que nós mesmos; e olha, que nós somos grandes. Tão grandes, que temos o poder de nos apequenar ante o incognoscível. Basta levantar a cabeça para escalar com o olhar a torre de uma catedral dessas para vermos o mundo girar que nem pomba gira, gerando forças centrífugas que nos arremete para fora da esfera humana, e que de uma forma ou de outra nos relativiza. É que as grandes catedrais exibem o poder de ampliar perspectivas a partir do nosso ponto de fuga, que, por divina conseqüência, nos acalma. Então, a religião tem um papel importante na redução da ansiedade; inclusive por status. Evidentemente, não é só o tamanho das catedrais que funciona como analgésico para ansiedades, mas principalmente os dogmas que em suas criptas se guardam a muito mais de sete mil chaves. Pois, sabidamente, o incognoscível e o inextricável é o que mais nos atrai para nos reforçar — porque, já que não os deslindamos, podemos delegar poder para que os dogmas se virem para resolver nossos problemas, inclusive os existenciais. Daí seu espírito mágico, axiomático, que conforta, e até mesmo extasia. Entretanto nós ainda nos valemos da religião para outros fins, como por exemplo formar círculo de relacionamento social, e até confrarias regidas por seus preceitos, ou não. Porém, para nenhuma dessas funções podemos afirmar que ela seja genuína; até porque qualquer religião nós pendemos a taxar de falsa, desde que o juízo não se refira a nosso próprio credo.
              Aí começa o problema. O fato é que, e não há como negar, com o advento do monoteísmo, tão celebrado por judeus, cristãos, e mulçumanos, a religião começou a tomar rumos que a tornaram força mais maligna que benigna, atuando com bairrismo, radicalismo, separando pessoas de forma violenta. O êxodo sírio em pleno século XXI é categórico exemplo disso. Desde que o Faraó Akhenaton — tido por historiadores como pioneiro a impor o monoteísmo — caçou todos os deuses do panteão egípcio, a moda pegou. Na Grécia, seis séculos antes de Cristo, o rapsodo Xenófanes de Colofônio acompanhou a procissão monoteísta ao propor aos gregos um único Deus; com um detalhe importante: o deus proposto pelo rapsodo nasceu sem corpo para que não fosse antropomórfico; ou seja, não queria que parecesse com gente como os do Olimpo. Por isso lhe deu forma de uma esfera eterna. Assim, deuses gregos sincretizados como Hermes Trimegisto, que é o Mercúrio dos romanos, e o deus Thot dos egípcios, perderam o alvará divinal. Mercúrio ainda teve sorte, seu alvará só foi ab-rogado para ser relegado à mitologia quando em 312 d.C. o Imperador Constantino se converteu ao cristianismo. A partir daí o mundo ocidental começa a grassar o monoteísmo.
              Já no politeísmo, onde se tem um panteão de deuses à disposição, não há disputa. Todos os deuses estão na vez, porque todos são de todos. Quando se acredita só num, é como torcer pelo seu time. Trimegisto era dos gregos, dos romanos, e dos egípcios. Identificar o mesmo deus com nomes trocados era na antiguidade clássica motivo de confraternização entre diferentes povos. Muitas guerras foram evitadas por essa divina coincidência. Mas com o advento do monoteísmo, Deus ficou deveras exclusivista, passando exigir não só que seja louvado, mas também a aniquilação sumária da concorrência. Só para ilustrar vejamos o que acontece no politeísmo hindu, seio da metempsicose, cujo vasto portfólio de deuses do seu panteão tem a árdua missão de acalentar a segregação para a subsistência do imoral regime de castas. Essa competência toda faz com que o povo conviva com toda sorte de mazelas sem se digladiar. E qual é o segredo para tanto êxito? A arma pacificadora é a metempsicose, que promete ao sujeito transmigração da alma se por aqui ele se comportar bem, podendo até reencarnar como filho de marajá.  Mas, se for insubordinado, poderá encarnar num rato, ou mesmo num réptil. Depende da gravidade da falta. Ora, se o custo para reencarnar num filho de marajá for o infortúnio, não tem talvez que a grande maioria se arrisca sem pestanejar a saborear a fome pacificamente. E ainda arrota felicidade. No caso do hinduísmo é mais confortável esperar, do que uma luta inglória para galgar posição social; pois ao segregado isso é vetado. De forma que esse comportamento rendido aos deuses promissores do politeísmo hindu é mais uma prova cabal de que a religião é mais um veículo de pacificação social, e até individual, que espiritual. Mas no monoteísmo o racha é grande. Quando não era para ser. Muito menos entre judeus e muçulmanos. A Caaba, pedra adorada caída do céu, símbolo de Alah, segundo os próprios árabes teve seu altar-abrigo construído por ninguém menos que Abraão e seu filho Ismael— que árabes acreditam que lhes deu origem. Portanto, Alah e Adonai são parentes próximos, não deviam continuar a refrega.
               Só há um caminho, e que todo mundo enxerga de longe, para que a prática religiosa se configure mais benigna que maligna para se legitimar: se despir do pretexto para a imposição e a violência. Se um cristão acredita no que a bíblia conta que ocorreu nas Bodas de Caná, quando então no auge da festa o vinho acabou, e, a pedido de sua mãe, Jesus dos Essênios teria transformado água em vinho, tem o livre direito de crer. O que homens de boa vontade não podem concordar é que em nome dessas e de outras idéias, às vezes até mais esotéricas, derive um código moral para nos estreitar.
             A história, infelizmente, está recheada de guerras, massacres, e uma infindável gama de atrocidades cometidas em nome da religião. No entanto, seriam necessárias milhares de páginas para enumerarmos apenas uma pequena parte acerca dessas atrocidades. E, até porque tão somente estas não são objeto de dissecação no meu ensaio, mas sim a condição humana perante elas, apenas enfocarei de relance algumas poucas, porém horrendas. Na América pré-colombiana, embora politeístas, os astecas já denotavam um pendor pelo monoteísmo entre os dois principais deuses do seu panteão, Huitzilopochtli e Quetzalcoatl, ambos insaciáveis devoradores de corações humanos, retirados do corpo com duríssimos punhais de obsidiana, e sempre com o sujeito vivo e bem acordado. Porém, os motivos encerram uma diferença moral entre as atrocidades das civilizações pré-colombianas e outras cometidas ao longo da idade média. Enquanto os corações ainda pulsando nas mãos dos sacerdotes astecas eram ofertados fresquinhos aos deuses num cerimonial bárbaro, as empalações torquemadêscas durante a inquisição tinham o objetivo de punir infiéis e hereges. Essa diferença moral nos leva a eleger a idade média como o palco mais terrível dessas atrocidades em nome da religião. Mas apenas moral, porque o terror é o mesmo. Torquemada, o empalador de infiéis na inquisição, que o diga! Contudo, o período medievo não é o único vilão da religião. No atroz cerco a La Rochelle no século XVII, a cidadela inexpugnável dos huguenotes (protestantes), o cardeal Richelieu — poderoso e sanguinário ministro de Luis XIII, não titubeou em usar a fome como arma durante um ano. Mesmo nesses tempos ditos civilizados, muitas vezes é a cor da fé que define aqueles a quem podemos trucidar. Jihadistas se acham no dever de matar infiéis. Em nome da sucessão do Profeta, sunitas e xiitas se acham autorizados a se exterminarem. E quando o ocidente se arvora a avocar a missão sagrada de apartar a briga pretextando semear democracia no beligerante mundo islâmico atual, o faz lançando mísseis psicologicamente macios ao nosso vê na TV; porque quando a poeira baixa, tá todo mundo dormindo nos travesseiros dessa poeira. Só que para sempre. Todavia, obviamente, a religião não é a única responsável por toda a violência de que o homem é capaz. No entanto é inegável que a religião serviu, e até hoje está servindo, de motor à barbárie. As decapitações horrendas promovidas pelo Estado Islâmico não ficam a dever nada frente às atrocidades acima ilustradas.
            Diante do exposto, e dada à impossibilidade virtual de acabar com os credos no afã de extinguir o seu lado ruim, não há como não vislumbrar que a medida a tomar é conter o cego fervor religioso. Pois se todos nós fossemos mais relapsos na obediência aos mandamentos da caição que instigam a destruição dos infiéis ao nosso credo, decerto teríamos um mundo mais pacífico. Sem pretender ser conselheiro de nenhuma religião, e longe disso, a adoção pelo islame do babismo — movimento religioso islâmico fundado na Pérsia nos fins da primeira metade do séc. XIX pelo reformador Mirza Ali Mohamed ibn Radnik (1824-1850) — seria um bom começo. Porque o pretenso descendente de Maomé, seu Mirza Ali, que se intitulava o Bab — ou seja, a porta pela qual os fiéis teriam acesso à divindade, já naquela época pregava a igualdade entre os sexos, proibia a poligamia, o consumo de álcool, e a mendicância. Porém, isto por si só não seria garantia de paz. Haja vista que não fosse pela fé, dado nosso espírito competitivo congênito, encontraríamos outros pretextos para nos digladiarmos, tipo a cor da pele, o idioma, ou algo que possa distinguir grupos.
            Não se pode, entretanto, esquecer que a religião esteja umbilicalmente ligada à origem e ao aprimoramento das coisas interessantes, como a música, a arquitetura, a pintura, a literatura, e a filosofia. O período renascentista é um rico exemplo disso. Mas, cabe grifar, que não é porque essas frutíferas realizações se deram sob o signo da religião que não teriam ocorrido sem ela.
           E na Inglaterra elizabetana, entre o final do século XVI e começo do XVII, que a dramaturgia começa a alfinetar filosoficamente a religião nos palcos. É Wlliam Shakespeare que ainda no inicio do século XVII (1601), abalado com a execução do Conde de Essex naquele ano, deixa as comédias de lado para apresentar o drama da condição humana. E é nesta época que o gênio da dramaturgia concebe os dramas mais sombrios: Hamlet, Troilo e Créssida, Otelo, O Rei Lear, Timão de Atenas, e Macbeth. Dentre estes espetáculos, pincei Hamlet no afã de realçar a inquietude que nos causa nossa condição. Pois é em Hamlet que Shakespeare faz pulular, e observamos claramente, que a religião se mostra dúbia quando ao tempo em que é um importante fator de contenção social é também um empecilho para o exercício da plenitude de existir. Do palco da sua lúcida eternidade artística, Hamlet é quem bem questiona melhor nossa incrível condição: “Ser ou não ser, eis a questão: será mais digno suportar a violência e o destino adverso, ou pegar em armas contra todas as dificuldades, contestá-las e destruí-las? Morrer, dormir, nada mais. Dizer que num sono damos fim à angústia e aos milhares de conflitos com que nascemos! É uma soberba solução, muito de se querer. Morrer, dormir…Dormir? E talvez sonhar. Ah, aí é que está! Que sonhos poderão vir no sono da morte, quando tivermos terminado o tumulto desta vida? Isso é o que nos faz refletir. E é esta reflexão que prolonga esta calamidade. Pois quem sofreria os açoites e os escárnios da época, a má fé do opressor, a afronta do orgulhoso, a tortura do amor desprezado, as dilações da justiça, a insolência oficial, os coices dos inúteis na paciência dos dolorosos — quando poderia por si mesmo alcançar a paz com um simples estilete? Quem suportaria todo esse mal, suando e gemendo nessa vida fatigante, se não fosse o pavor de alguma coisa depois da morte (este país desconhecido de onde ninguém retorna)? É isso que embaralha a nossa vontade e nos faz preferir os males que temos a nos lançar ao que desconhecemos. E assim, a reflexão nos transforma em covardes; e assim, a cor da decisão empalidece sob a capa da prudência; e assim, projetos importantes e oportunos mudam sem rumo, e de ação nem o nome podem ter”.
                Quando Hamlet pergunta: “Quem suportaria todo esse malsuando egemendo nessa vida fatigantese não fosse o pavor de alguma coisa depois da morte?”, culpa clara, porém eufemisticamente, a religião por prolongar para além da vida esse torpor com a ameaça velada sempre a espreita. Isso nos estreita. Hindu tem medo de ser rato. E cristão de purgatório.
Por aí se tira quão inverossímil é a nossa condição existencial (pelo menos a atual).
Alexandre Salem, romancista.  

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